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11.

  • Foto do escritor: sabrinaduran
    sabrinaduran
  • 19 de jan. de 2017
  • 20 min de leitura

Texto publicado em dezembro de 2016, em versão resumida, no livro "Transite - os/as brasileiros/as e suas bicicletas", do fotógrafo Felipe Baenninger.

Por Sabrina Duran

Prezada/o leitora/or,

Este não é um livro patrocinado pelo banco Itaú.

É fundamental começar esse texto explicitando esta informação porque hoje, 2016, já é o terceiro ou quarto ano de consolidação de um tipo de cicloativismo institucionalizado que faz pesquisas sobre bicicleta, publica livros e influencia o poder público na promoção do uso da bike como meio de transporte com patrocínio e ingerência do Itaú. Essa mão visível e laranja do mercado financeiro sobre o cicloativismo vem, pelo menos desde 2012, apropriando-se de uma luta de décadas pela legitimação da bicicleta como meio de transporte. Essa apropriação tem como consequências mais evidentes 1) o direcionamento de pautas públicas sobre a bicicleta pelo banco Itaú por meio de seus cicloativistas "de confiança" (em geral, dirigentes de associações e de coletivos que são patrocinados pela instituição financeira); e 2) a exploração da mão de obra de mulheres e homens que, com boa vontade, oferecem seus serviços de maneira gratuita ou mal paga – como em contagens de ciclistas ou no Festival Bicicultura, realizado em 2016 – sem nem imaginar que estão legitimando a apropriação de uma causa social pelo banco mais lucrativo do país [e de pensar que há até poucos anos a pauta da bicicleta apoiava-se num entendimento anticapitalista do uso desse modal].

Começar o texto com essa informação é importante, primeiro, para colocar este livro numa trincheira diametralmente oposta à do colonialismo de um cicloativismo patrocinado e institucionalizado que reclama para si a legitimidade de uma luta que é, em sua gênese, coletiva, horizontal e autônoma. Segundo, é importante trazer de início essa informação para introduzir o tema central desse artigo: os "donos do cicloativismo". Nele falaremos dos donos do cicloativismo de São Paulo a partir de uma história ocorrida em 2012. Essa história, até agora não arejada publicamente, foi indicativa das transformações que a luta pela legitimação da bicicleta como meio de transporte em São Paulo foi sofrendo desde que o Itaú começou a patrocinar associações e coletivos cicloativistas, e desde que o prefeito Fernando Haddad (PT) assumiu a gestão municipal em 2013. Do horizonte anticapitalista, autônomo, horizontal e autogerido que movia o cicloativismo em São Paulo do início até meados dos anos 2000, passou-se, a partir de 2012, 2013, a um cicloativismo que renega a pauta anticapitalista, autônoma, horizontal e autogerida em nome de um ganho de escala nas ações em prol da bicicleta. "Se não fosse com esse dinheiro do Itaú, como teríamos fôlego para fazer tudo o que estamos fazendo?"; "se não fosse o prefeito fazer 400km de ciclovias, o que teríamos de infraestrutura na cidade?", perguntam os donos do cicloativismo de São Paulo. Um falso dilema costuma buscar sempre uma resposta que encubra, ao menos em aparência, a verdadeira raiz do problema. Para solucionar um falso dilema não é preciso respostas, mas perguntas. Nesse caso, talvez seja essa: e quem estabeleceu metas que só o dinheiro de um banco alcança e que só um prefeito aliado a este mesmo banco pode executar? Certamente não foi o cicloativismo de horizonte anticapitalista.

Não esperamos que esse texto fale do cicloativismo no Brasil de forma geral. Trata-se de um recorte temporal e geográfico específico – o que não significa que essa análise não possa encontrar eco em outras partes do país, nem que não possa contemplar, de alguma forma, outros donos do cicloativismo.

Também não esperamos que gostem do texto. Nem de nós. Esperamos apenas que reflitam criticamente.

Boa leitura.

A terceira entidade

24 de março de 2012. Sábado de manhã. Convidados pela Ciclocidade - Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, diversos grupos, entidades e coletivos ligados à mobilidade por bicicleta na capital paulista encontraram-se durante um almoço coletivo em espaço público para que, mutuamente, pudessem conhecer as diferentes iniciativas de promoção da bicicleta como meio de transporte, "buscar sinergias e também entender as limitações e desafios nas atuações de cada participante." O encontro durou mais de três horas, e passou pela apresentação individual de cada presente, pela discussão coletiva sobre as atividades de cada grupo e pelos aspectos históricos e contemporâneos do cicloativismo em São Paulo.

Pouco menos de um mês após o encontro, a Ciclocidade produziu e divulgou entre as/os participantes da reunião uma carta com resumo e conclusões daquela conversa. Assinado em 22 de abril de 2012 por Gabriel Di Pierro, Jéssica Martineli e Thiago Benicchio, o documento de 11.292 caracteres [com espaços] trazia em sua primeira metade uma breve apresentação histórica sobre o cicloativismo em São Paulo, sobre o encontro do dia 24/03 e sobre a própria Ciclocidade. [1] A outra metade destinou-se a uma crítica frontal ao coletivo CicloLiga, que a Ciclocidade identificou como uma "terceira entidade" (além dela e do Instituto CicloBR) que atuava "em nome dos ciclistas", diluindo esforços e personalizando o ativismo. [2] [leia o documento completo no final desse texto, logo após a lista de referências]

Foi uma avaliação fantasiosa, tanto na forma quanto no conteúdo. Primeiro porque a CicloLiga não era uma entidade em termos formais e nem pretendia ser, muito menos se colocava como representante de qualquer pessoa ou grupo social. Tratava-se da união de alguns coletivos que, articulando diferentes habilidades e ideias sob um mesmo nome, produziam vídeos e campanhas virais na internet apresentando de forma didática algumas demandas de quem pedalava na cidade àquela época. [3]

Um metro e meio: a distância que aproxima

O primeiro vídeo da CicloLiga foi publicado em janeiro de 2012, e tratava da dificuldade que era transportar a bicicleta nos braços pelas escadas fixas do metrô de São Paulo. [4] O vídeo de 3:48 minutos teve mais de 7 mil visualizações e acabou chamando a atenção do então presidente do metrô na época, Sérgio Avelleda. Alguns dias após a divulgação do material produzido pela CicloLiga, Avelleda convidou o grupo para uma reunião para tratar do assunto exposto. O encontro foi filmado e divulgado pelo coletivo. A liberação para o transporte das bicicletas pelas escadas rolantes nas estações do metrô e da CPTM no sentido da subida aconteceria em fevereiro do mesmo ano. [5]

Em março de 2012, o coletivo CicloLiga lançou outros dois vídeos, ambos pertencentes a uma série chamada "Um metro e meio: a distância que aproxima", que previa pelo menos três produções. [6] [7] O primeiro vídeo falava sobre a distância de um metro e meio prevista em lei que deveria ser observada por motoristas ao ultrapassarem ciclistas. O filme mostrava, de forma didática, como uma/um motorista poderia fazer a ultrapassagem de forma segura, sem colocar em risco quem pedala. O vídeo teve quase 60 mil visualizações. Já o segundo vídeo era uma crítica, baseada em dados, à omissão da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) que não fiscalizava e nem multava motoristas que não respeitavam a lei do metro e meio, prevista no artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Foram contabilizadas mais de 10 mil visualizações dessa produção.

O terceiro vídeo nem tinha começado a ser pensado ainda quando Marcelo Branco, então presidente da CET e secretário municipal dos Transportes, chamou integrantes da CicloLiga para uma conversa. Do encontro, realizado em 29 de março de 2012, saíram dois compromissos formalizados por Branco: no primeiro, a secretaria municipal de Transportes criaria uma campanha alertando motoristas para a necessidade de respeito às/aos ciclistas nas ruas. O segundo era que, depois da campanha, a CET passaria a fiscalizar e multar motoristas que colocassem em risco a vida de ciclistas. [8] Os dois compromissos foram cumpridos à época.

O que fica claro nas ações da CicloLiga é que a ideia de explicar o problema de forma didática e pressionar órgãos públicos, publicamente, citando nomes de pastas e seus responsáveis institucionais, naquele contexto e conjuntura, era a aposta do grupo. Em nenhum momento qualquer membro da CicloLiga entendeu que o coletivo deveria se institucionalizar como uma "terceira entidade" cicloativista. Pelo contrário. O que o grupo buscava e o que o caracterizava era justamente a possibilidade de formar-se e desfazer-se em função da discussão de uma ideia pontual com um objetivo de curto prazo.

Cicloativismo a reboque

Após a divulgação da carta pela Ciclocidade, os grupos participantes do encontro, especialmente os que compunham a CicloLiga, entenderam que a atividade proposta pela associação naquele 24 de março de 2012 havia servido como uma espécie de "arapuca" cujo objetivo era apontar e neutralizar o surgimento do que a associação identificou [de novo: fantasiosamente] como uma "terceira entidade" a rivalizar e diluir esforços entre as duas associações já constituídas.

O recado dado pela Cicloclidade à CicloLiga naquele documento, no entanto, muito mais do que desencorajador de novas iniciativas do coletivo, soou profético sobre a própria Ciclocidade.

"A representatividade é uma construção política coletiva. Não entendemos indivíduos isolados ou auto-representados fazendo diálogos com o poder público 'em nome' dos ciclistas. Mesmo que exista em torno deles algum tipo de respaldo ou por mais qualificadas que sejam suas opiniões, a produção de ideias e ações sempre será de um círculo de 'convidados', restringindo o diálogo público e impedindo a construção de memória e processos duradouros. Acreditamos que a fase dos indivíduos auto-representados ficou no passado e que a insistência nesse modelo apresenta riscos de manipulação, cooptação e enfraquecimento coletivo. Sem mecanismos de transparência e participação mínimos, tal modelo muitas vezes resulta na legitimação de ações capciosas e até contraproducentes (em especial no ano eleitoral)".

O trecho acima foi retirado da tal carta escrita pela Ciclocidade em 2012. Em 2013, quando Fernando Haddad (PT) iniciou sua gestão como prefeito de São Paulo, a associação ganhou alguns dos contornos que criticava – mesmo sem qualquer materialidade – naquela "terceira entidade".

Na meta 97 do seu Plano de Metas 2013-2016, o então recém-eleito prefeito propôs "implantar uma rede de 400 km de vias cicláveis". Vias cicláveis podem incluir ciclovia, ciclofaixa e ciclorrota. [9] Quando, em junho de 2014, a prefeitura apresentou um plano de construção de 400 km de ciclovias, ou seja, apenas vias segregadas, a agenda de demandas do cicloativismo institucional seguiu o mesmo rumo, adaptando-se à prioridade de ciclovias daquela gestão e seguindo-a a reboque. [10] O plano, feito sem a ampla participação da sociedade civil, segundo membros do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT) [11], contrariava não apenas a demanda histórica por compartilhamento da rua por todos os modais, sem segregação, como também uma pesquisa feita junto a ciclistas pela própria Ciclocidade meses antes das eleições de 2012.

Via internet, a associação recebeu mais de mil respostas de uma pesquisa que procurava mapear as propostas das/dos ciclistas para as/os próximas/os governantes – prefeita/o e vereadoras/es. A proposta número um da lista era a fiscalização de motoristas, seguida por 2) constituição de um plano cicloviário, 3) cumprimento de prazos para projetos cicloviários, 4) bicicletários integrados ao transporte coletivo, 5) educação para motoristas, 6) regulamentação de leis já aprovadas, 7) aprovação de novas leis, 8) bicicletários em estabelecimentos públicos e privados e só em nono lugar aparecia a construção de ciclovias em avenidas; em décimo constava a demanda por espaços de diálogo institucional. [12]

Em março de 2015, o Ministério Público de São Paulo tentou barrar a construção das ciclovias pela gestão Haddad, com o argumento de que não houve planejamento na elaboração das mesmas. A partir desse fato, a defesa institucional das ciclovias pela Ciclocidade tornou-se ainda mais intensa, sendo seguida por outros grupos e coletivos cicloativistas não institucionalizados, inclusive de outros estados e até de outros países, que organizaram protestos em defesa desse tipo de infraestrutura privilegiada pela prefeitura de São Paulo. [13]

Cicloativismo lobista

O que está em questão aqui não é a pertinência maior ou menor das ciclovias – quem negará sua importância? –, mas justamente a fragilidade institucional de um grupo que, mesmo cercado de aparatos burocráticos que supostamente garantiriam transparência e participação pública em suas ações, não pôde livrar-se da cooptação, da manipulação e da diluição de pautas históricas coletivas em função do calendário e do horizonte eleitoral de um gestor. O gestor passa, mas quem pedala fica, com ou sem ciclovia, com ou sem educação permanente para o compartilhamento da via por todas e todos.

A partir desse fato, é compreensível que o monotema da ciclovia tenha colocado, pela ação do cicloativismo institucional, essa infraestrutura num patamar alheio às demais realidades da vida urbana, pairando absoluta acima de desigualdades sociais estruturais que se expressam no corpo da cidade por meio das dimensões de raça, gênero, sexualidade e classe. Exemplo disso é que em julho de 2015, quando a prefeitura de São Paulo expulsou 78 pessoas em situação de rua dos baixos do Elevado Arthur da Costa e Silva (o Minhocão), no centro de São Paulo, para construir uma ciclovia, nenhuma manifestação de peso por parte do cicloativismo institucionalizado foi feita no sentido de questionar a ação da municipalidade ou de defender o direito à moradia das 78 pessoas expulsas daquele espaço. [14]

Outro exemplo da defesa acrítica de um gestor e de uma gestão pela simples conveniência da pauta – e não em função da construção de uma cidade menos desigual para todos e todas – é o artigo publicado pelo atual diretor geral da Ciclocidade, Daniel Guth, em seu blog na Folha de S. Paulo em 26/01/2016. [15] Com o título "Após suspensão do TCM, prefeitura desiste de licitação para sistema de bicicletas públicas", Guth, em seu texto, comete uma série de equívocos e imprecisões técnicas que induzem a/o leitora/or ao erro, sugerindo que a prefeitura, por pressão do Tribunal de Contas do Município (TCM), viu-se obrigada a optar por um contrato menos seguro com um parceiro privado para renovar a operação das bicicletas para empréstimo em São Paulo – sistema atualmente operado pelo banco Itaú. [16] Com isso, o autor do texto isentava a municipalidade, de antemão, da responsabilidade por um eventual problema contratual no futuro. Os erros cometidos por Daniel Guth eram incompatíveis com a atuação de quem, como ele, é um dos líderes da Rede Bicicleta Para Todos, cujo objetivo é a proposição de uma base legal que desonere o setor de bicicletas e democratize o acesso à compra de uma bike. Como explicar um texto tão impreciso? Despiste? Má-fé? O fato é que, depois de publicada e compartilhada, a desinformação já estava instalada. Uma desinformação que não é sem consequências, pois ao isentar o gestor a priori de erros que talvez venha a cometer, Guth evitou a possibilidade, naquela discussão, de a sociedade civil exigir do gestor uma correção de rumos para evitar o problema. Em tempo: os erros conceituais cometidos por Daniel Guth começavam já no título do artigo, que ele alterou (trocou "licitação" por "edital de chamamento") logo após ser questionado em sua página do Facebook.

Uma visão monolítica sobre a bicicleta gerada pelo seu descolamento das questões urbanas estruturais e pela sua fetichização é o que favorece a vista grossa para ilegalidades e mesmo graves violações de direitos, seja pela ação dos gestores, de empresas privadas, seja pela omissão de grupos, como os de cicloativistas, que deveriam fazer a crítica política estrutural mesmo – ou principalmente – quando estão sendo beneficiados por projetos públicos de interesse próprio.

Como escreve Talita Noguchi, "ao fechar os olhos a essas violações de direitos humanos, o cicloativismo atua como um movimento lobista, realizando manobras em causa própria e optando por não pensar na sociedade como um todo." [17]

O cicloativismo "dos meninos"

Por fim, da profecia auto-realizadora registrada pela Ciclocidade no documento de abril de 2012, cumpriu-se também, ao que parece, o "não entendemos indivíduos isolados ou auto-representados fazendo diálogos com o poder público 'em nome' dos ciclistas (...)."

Patrocinada pelo banco Itaú desde maio de 2013 [18], a Ciclocidade vem sendo, em alguns aspectos, instrumentalizada pela instituição financeira como ponte legitimadora de suas transações com a gestão municipal no que tange à mobilidade por bicicleta. Essa instrumentalização não é explícita – assim como quase nenhum dispositivo de cooptação e apropriação no atual estágio do capitalismo-neoliberal-cognitivo-afetivo. Utilizando-se de figuras centrais de dentro da associação de ciclistas, executivos do banco validam seus projetos e conseguem implementá-los em nível municipal a partir das referências pessoais e técnicas que têm entre os cicloativistas. Por outro lado, para ter acesso aos dados e informações sobre ciclomobilidade produzidos pelos cicloativistas, o Itaú aposta no discurso de que a ciclomobilidade para o banco não marketing, mas causa, e que o acesso aos dados e informações – e à bandeira cicloativista – é fundamental para convencer os gestores públicos da pertinência da bicicleta para a cidade.

"Os meninos", como são tratados alguns membros da Ciclocidade pelo Itaú, são consultados pela instituição financeira, de maneira personalista, para tratar de políticas públicas de mobilidade e ações em espaços públicos. Foi assim com a operação do food truck da Praça dos Arcos, na avenida Paulista; foi assim com o Festival Bicicultura realizado em 2016 na capital paulista; foi assim com a discussão sobre os parklets instalados na cidade, sobre bicicletários públicos e sobre a ampliação do sistema de empréstimo de bicicletas operado pelo banco. Ou seja: antes de ganharem dimensão da coletividade, as conversas sobre políticas públicas de mobilidade por bicicleta na maior cidade da América do Sul são feitas pelo Itaú com "os meninos". Uma espécie de petit comité do cicloativismo paulistano.

Importante dizer que o Itaú, enquanto empresa mais que ciente das transformações do capitalismo nas últimas três décadas, precisa ligar-se a entidades cicloativistas, a grupos de artistas, de urbanistas, a comunicadores independentes e a ativistas de toda ordem a fim de apropriar-se, no convívio e simbiose com esses agentes, da força simbólica de suas virtudes e de sua legitimidade social. Esse é um dos mecanismos utilizados pelo banco e por outros mega capitalistas como forma de neutralizar os efeitos colaterais que são gerados pelas grandes corporações sobre a sociedade. No caso dos bancos, de forma geral, o efeito mais patente é a espoliação dos governos e das pessoas por meio do mecanismo da dívida; no caso do banco Itaú, especificamente, está evidente a violência institucional e física que vem gerando contra secundaristas do país inteiro por conta da reforma do ensino público da qual ele é um dos principais articuladores [19] [20]; está evidente a violência contra pessoas em situação de rua que o banco exigiu que fossem retiradas, pela prefeitura de São Paulo, da frente de suas agências [21] [22] [23] [24] [25]; a violência praticada contra funcionárias e funcionários de suas agências para que cumpram metas até o limite da saúde física e mental [26] e, ainda, a violência generalizada da aprovação da PEC do teto de gastos (ou "PEC do fim do mundo") [27].

Por mais que exista a roupagem de isenção e transparência da institucionalidade, é a velha política de balcão que ainda faz a roda girar em alguns âmbitos da luta social, seja no cicloativismo ou em outros movimentos. E isso não é exclusividade da Ciclocidade ou de qualquer outro grupo institucionalizado. Trata-se da maneira como algumas políticas públicas são feitas quando atravessadas pelo patrimonialismo e, mais recentemente, pela racionalidade neoliberal, que "tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação." [28]

Por fim

Esse texto teve dois objetivos.

O primeiro: fazer a crítica ao "cicloativismo dos meninos", ou ao cicloativismo como lobby, ou, ainda, ao cicloativismo como propriedade de um grupo, institucional ou não, seja de São Paulo ou de qualquer outra cidade do país. Porque assim como existem os donos de Foucault e de Marx, também existem os donos do cicloativismo. Não é difícil identificá-los: nos discursos, costumam recorrer ao "eu já estava lá quando tudo era mato no cicloativismo"; quando questionados sobre suas práticas políticas e coligações com empresas, tergiversam logo perguntando onde estava você na última reunião mensal do grupo – como se fora do âmbito institucional formalizado registrado em ata não existisse vida política legítima; alegam que a crítica à sua postura serve "ao jogo da direita" [aquela mesma direita à qual estão vinculados pelo viés econômico] e insistem em que focar nas diferenças, e não nas semelhanças, atrapalha o avanço da luta, como se a crítica, enquanto proposição de correção e reflexão sobre novos rumos, fosse tarefa inócua – se a metáfora serve de algo, o que seria da viagem de uma embarcação que, a cada dia, desviasse um quilômetro da rota prevista, sem nunca corrigi-la? O mutismo crítico – ou a "passada de pano", como se diz – só interessa à perpetuação do status quo, e o discurso do foco único no consenso, e a ojeriza ao dissenso, é uma das principais estratégias cultivadas na racionalidade neoliberal, que borra fronteiras de conflitos com o fim único de domesticá-los e manter o clima de bons negócios. Por fim, em geral [mas nem sempre] os donos do cicloativismo são homens brancos de classe média, heterossexuais e cisgêneros, e os mais graduados na posse do cicloativismo usam crachá laranja.

É preciso criticar e desconstruir o ativismo colonizador, qualquer que seja, que ignora gênero, sexualidade, raça e classe nas suas propostas e que comercializa e barganha horizontes coletivos. E não há que se esperar que a crítica e a consciência da colonização das lutas venham de quem coloniza. Nenhuma hegemonia se auto-reforma ou cede tanto espaço que ameace sua posição hegemônica.

O segundo objetivo do texto: fazer o registro de um fato que começou em 24 de março de 2012 e que até agora contava apenas com um lado da história – o lado hegemônico dos donos do cicloativismo.

REFERÊNCIAS

[1] https://www.dropbox.com/s/p0lmzz6l97jaqql/2012-04-23-Avalia%C3%A7%C3%A3o%20do%20encontro%20de%20grupos%20entidades%20e%20coletivos.pdf?dl=0

[2] https://www.facebook.com/CicloLiga/

[3] https://www.youtube.com/user/Cicloliga

[4] https://www.youtube.com/watch?v=jyTbF6XOrSA

[5] http://colunas.revistaepocasp.globo.com/nabike/2012/02/14/ciclistas-reunem-se-com-presidente-do-metro-e-falam-sobre-bike-e-transporte-intermodal/

[6] https://www.youtube.com/watch?v=bay8oxXGzJE

[7] https://www.youtube.com/watch?v=eO2zsB133IM

[8] http://colunas.revistaepocasp.globo.com/nabike/2012/04/05/ecretario-municipal-de-transportes-e-presidente-da-cet-marcelo-branco-assume-compromisso-de-multar-motorista-que-colocar-ciclistas-em-risco-a-aplicacao-da-multa-entrara-em-vigor-em-30-dias/

[9]http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/planejamento/arquivos/15308-004_AF_FolhetoProgrmadeMetas2Fase.pdf

[10] http://www.ciclocidade.org.br/noticias/555-secretaria-de-transportes-apresenta-proposta-de-400km-de-ciclovias-em-sao-paulo

[11] http://www.ciclocidade.org.br/70-noticias/555-secretaria-de-transportes-apresenta-proposta-de-400km-de-ciclovias-em-sao-paulo

[12] http://www.ciclocidade.org.br/noticias/233-ciclocidade-e-ciclobr-divulgam-resultado-da-pesquisa-qeleicoes-2012-e-a-bicicleta-em-sao-pauloq

[13] http://www.ciclocidade.org.br/noticias/682-boletim-especial-as-ciclovias-em-perigo

[14] http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haddad-retira-sem-teto-de-nova-ciclovia,1726692

[15] http://abicicletanacidade.blogfolha.uol.com.br/2016/01/26/prefeitura-desiste-de-licitacao-para-sistema-de-compartilhamento-de-bicicletas/?cmpid=comptw

[16] http://www.sauva.blog.br/single-post/2016/02/02/BIKE-SHARING-EM-SP-A-PREFEITURA-T%C3%81-NA-M%C3%83O-DAS-EMPRESAS

[17] http://www.sauva.blog.br/single-post/2016/12/07/9

[18] http://www.ciclocidade.org.br/noticias/453-ciclocidade-e-itau-celebram-parceria

[19]https://www.dropbox.com/sh/vm70pdu7rxns9h4/AAAL2Koic0mylJ22UcvZKVaXa?dl=0&preview=Zine+para+Leitura_Privatiza%C3%A7%C3%A3o+do+Ensino.pdf

[20] http://www.passapalavra.info/2016/12/110113

[21] http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/

[22]http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/dadosabertos/documentos/1%20OFICIO%20ITAU%20PARA%20SMADS%20-%2018%20JANEIRO%202013.pdf

[23]http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/dadosabertos/documentos/2%20OFICIO%20ITAU%20PARA%20SMADS%20-%2029%20MAIO%202013.pdf

[24]http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/dadosabertos/documentos/3%20OFICIO%20ITAU%20PARA%20SMADS%20-%2015%20JULHO%202013.pdf

[25]http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/dadosabertos/documentos/4%20OFICIO%20ITAU%20PARA%20SMADS%20-%2010%20JULHO%202014.pdf

[26] http://exame.abril.com.br/negocios/funcionaria-aborta-em-agencia-e-itau-e-processado-em-r-20-mi/

[27] http://www.infomoney.com.br/mercados/noticia/5621063/perguntas-que-voce-esta-fazendo-sobre-pec-teto-gastos-respondidas

[28] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo, 2016.

DOCUMENTO DA CICLOCIDADE

São Paulo, 22 de abril de 2012

Avaliação do encontro de grupos, entidades e coletivos - Ciclocidade

Histórico

O encontro de grupos, entidades e coletivos que atuam na questão da mobilidade por bicicletas em São Paulo, acontecido em 24/03/2012, surgiu a partir da necessidade identificada pela Ciclocidade de conhecermos as diversas iniciativas, buscar sinergias e também entender as limitações e desafios nas atuações de cada participante.

Até 2009, a luta pela mobilidade por bicicletas em São Paulo era uma atividade de indivíduos e/ou que acontecia em grupos e movimentos informais. Assim, tanto indivíduos como Arturo Alcorta, Renata Falzoni, Sergio Bianco ou Cleber Anderson, quanto movimentos horizontais e informais como a Bicicletada ou grupos de passeio noturno tinham atuações pontuais e diversas, impulsionando a discussão pública.

A “nova geração” de ciclistas que começou a atuar nos anos 2000 tem o seu berço na Bicicletada, encontros mensais, não-hierárquicos, sem propostas definidas ou lideranças formais. Este movimento, cujas raízes estão nos protestos antiglobalização do início dos anos 2000, acontece em São Paulo desde 2002, mas ganhou força a partir de 2004 (quando a data de encontro mudou de sábado de manhã para sexta-feira à noite).

Ao promover o encontro de usuários regulares de bicicleta como meio de transporte e de pessoas que estavam começando a usar este veículo, a Bicicletada foi capaz, ao longo dos anos, de criar laços de solidariedade e afinidade entre os participantes. A frequência dos encontros e as ações insistentes de diversos indivíduos em blogs, manifestações e ações de intervenção urbana, aliadas ao crescimento do congestionamento na cidade e à busca de alternativas, tornaram cada vez mais visível a “questão da bicicleta” em São Paulo.

O ano de 2009 marca uma virada importante: em janeiro, Márcia Prado foi morta por um ônibus na Avenida Paulista. A participação de Márcia na Bicicletada, os laços de solidariedade dela com dezenas de ciclistas e o local da morte fez com que o caso se tornasse um dos primeiros (se não o primeiro) a ganhar escala do “mainstream” midiático.

A importância histórica do trabalho permanente e anônimo de inspiração, contestação e proposição de alternativas na Bicicletada ainda é sub-dimensionado, talvez pela diáspora acontecida a partir de 2009, talvez pela falta de reflexão política em perspectiva histórica sobre os acontecimentos recentes.

No começo daquele ano, alguns dos participantes da Bicicletada e outros ciclistas começaram a discutir as limitações do movimento horizontal e a necessidade de criar uma entidade representativa para alcançar outras escalas de atuação que a Bicicletada não queria ou não podia (devido à sua essência) alcançar. No segundo semestre de 2009, o projeto de uma Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo estava bastante avançado, mas uma divisão equivocada fez com que duas entidades fossem criadas praticamente ao mesmo tempo (CicloBR e Ciclocidade), dividindo forças e gerando ruídos que permanecem ecoando até o presente.

A partir daquele momento, uma dezena de grupos e iniciativas de todos os tipos começou a aparecer na cidade. Entidades, empreendimentos comerciais, projetos autônomos ou em parceria com o poder púbico, consultorias, coletivos de arte, documentaristas, videoartistas, atividades de apoio ao ciclista, passeios noturnos e blogs, realizados não apenas por quem participava da Bicicletada, mas também por diversos indivíduos, empresas e grupos que começavam a se aproximar da temática.

Quem somos?

O encontro de março permitiu que conhecêssemos a história, os objetivos e o funcionamento de cada participante. Avaliamos que as respostas às 5 perguntas propostas foram bastante importantes, inclusive para que cada grupo refletisse sobre a sua própria atuação.

A Ciclocidade vem construindo o seu “quem somos, para onde vamos e como vamos” ao longo dos últimos 3 anos. Depois de uma primeira gestão “intuitiva” nos dois anos iniciais, acreditamos que este segundo período tem bases um pouco mais sólidas e o funcionamento um pouco mais ajustado. Isso se deve não apenas à entrada de novas pessoas nos cargos de direção e nas equipes de trabalho, mas também pelo aprofundamento da prática e da discussão cotidiana sobre os propósitos e finalidades da Associação.

Os participantes do encontro trouxeram projetos bastante pertinentes e capazes de colaborar com a legitimação definitiva da bicicleta em São Paulo.

Destacamos a importância do BikeAnjo em encorajar o ciclismo urbano para iniciantes por meio de educação “na prática”; das Pedalinas em promover discussões sobre gênero e fortalecimento das mulheres ciclistas; do Coletivas em propor uma inspiração prática sobre a lógica de produção-consumo-descarte; do Vá de Bike e da “mídia conivente” (Renata Falzoni) em criar veículos alternativos que se tornaram referência; dos grupos de passeio noturnos pela persistência e possível ligação com o uso da bicicleta como transporte; da associação Transporte Ativo pela experiência longa e bem-sucedida no Rio de Janeiro; e do CicloBR por explicitar as dificuldades de lidar com o legado de um início complicado, contar sobre os projetos realizados e manifestar o seu desejo de fortalecimento como entidade representativa e atuante.

Representatividade

Não conseguimos encontrar, no entanto, coerência de objetivos nem sintonia entre o que foi exposto e o que vem sendo realizado pela Ciclo Liga. Não conseguimos entender a composição do “coletivo dos coletivos” tendo como integrante um blog (Vá de Bike). Compreendemos que a soma de um projeto que ajuda iniciantes (Bike Anjo), de um coletivo de arte (CRU), de um blog (Vá de Bike) e de um projeto de reciclagem de bicicletas (Coletivas) não resulta diretamente em uma entidade que dialoga com o poder público para reivindicar ou propor mudanças. Para desempenhar tal papel, acreditamos ser necessário construir mecanismos de transparência e participação.

Também tivemos dificuldade em compreender a coerência entre o objetivo de “constranger autoridades sobre situações problemáticas” afirmado durante a reunião e os resultados obtidos até agora. Nossa avaliação é de que a questão das escadas rolantes do metrô e do 1,5 m serviram mais para promover as autoridades em questão do que para constrangê-las.

A capacidade de coletivos de serem informais, anárquicos, dinâmicos e/ou inovadores também implica no fato de não serem canais representativos, que promovam o diálogo formal com autoridades, mas que sejam capazes de intervir no espaço público, promover novas práticas e agregar pessoas de forma livre e independente. Certamente cabe a estes coletivos sentir- se ou não representados por instituições, mas não substituir suas funções. Muitas das ações feitas até 2008, como a pintura de bicicletas no chão, causaram impacto significativo, mas seus autores não buscaram, com isso, representar ou se colocar como interlocutores “dos ciclistas”. Do mesmo modo, entre os anos de 2005 e 2008, diversos coletivos atuaram ao lado de movimentos de moradia na região central da cidade para impedir a gentrificação da região, mas em nenhum momento se propuseram a discutir pautas ou reinvindicações em nome dos movimentos.

Compreendemos que o surgimento de uma terceira “entidade” que atue em nome dos ciclistas decorre da percepção de não-representação por nenhuma das duas entidades existentes (CicloBR e Ciclocidade) e, talvez, de um sentimento de urgência que aparentemente se confronta com a imagem de “burocratização”, “complexidade” e “ineficência” da Ciclocidade (e talvez do CicloBR). Ressaltamos o nosso entendimento de que a transformação de São Paulo em uma cidade ciclável não é um processo rápido, pois existem dinâmicas políticas, econômicas e culturais bastante sólidas agindo no sentido contrário.

A “burocracia funcional” de entidades representativas é o instrumento que permite consolidar processos para que eles não sejam tão dependentes das pessoas. Ou seja, é o que permite formas de organização que guardem memória, ofereçam transparência, permitam a participação e a continuidade do processo, mesmo com o afastamento de uma ou outra pessoa.

A representatividade é uma construção política coletiva. Não entendemos indivíduos isolados ou auto-representados fazendo diálogos com o poder público “em nome” dos ciclistas. Mesmo que exista em torno deles algum tipo de respaldo ou por mais qualificadas que sejam suas opiniões, a produção de ideias e ações sempre será de um círculo de “convidados”, restringindo o diálogo público e impedindo a construção de memória e processos duradouros.

Acreditamos que a fase dos indivíduos auto-representados ficou no passado e que a insistência nesse modelo apresenta riscos de manipulação, cooptação e enfraquecimento coletivo. Sem mecanismos de transparência e participação mínimos, tal modelo muitas vezes resulta na legitimação de ações capciosas e até contraproducentes (em especial no ano eleitoral).

Conclusão

Acreditamos que a constelação de projetos, grupos, coletivos e entidades é

muito importante para conquista de melhores condições para os ciclistas. Entendemos que o desafio comum de transformar a cidade pressupõe o entendimento dos múltiplos papéis que estão à disposição de todos, evitando ao máximo a sobreposição de funções e a divisão de forças.

Os desafios de qualquer empreendimento coletivo do chamado terceiro setor são inúmeros e alguns foram apontados pelos participantes: trabalho voluntário, falta de recursos, falta de comprometimento e dificuldades de organização do trabalho.

Salvo as ressalvas expostas nesta avaliação, acreditamos nas ações de todos e queremos buscar sintonia com as diversas propostas. Juntos, podemos somar e facilitar o trabalho de cada um baseados em princípios éticos e de transparência. No entanto, não acreditamos no apoio incondicional a qualquer iniciativa e também não esperamos o contrário, afinal cada grupo ou entidade deve construir a sua história, seus princípios, objetivos e formas de atuação.

Por fim, manifestamos o desejo de que os grupos e entidades presentes (inclusive a Ciclocidade) busquem se “despersonalizar”, ou seja, que consigam criar estruturas de funcionamento menos dependentes do trabalho e de figuras individuais. Ainda que as habilidades, a legitimidade e o papel de liderança de alguns indivíduos destes grupos sejam inquestionáveis, acreditamos que o universo dos ciclistas urbanos de São Paulo é muito maior do que a soma destas pessoas.

Reafirmamos que a Ciclocidade busca ser um espaço aberto e representativo dos ciclistas, promovendo a participação e a transparência. Certamente precisamos avançar não só na efetividade das nossas ações, como também na qualificação destes espaços e ferramentas participativas. No entanto, já temos hoje condições de receber interessados/as pelos nossos canais de comunicação e por meio de uma reunião geral aberta que acontece toda segunda quarta-feira de cada mês.

Entendemos que a sinergia buscada por todos nós para alcançarmos o objetivo comum de uma cidade melhor não pode prescindir do diálogo crítico, objetivo e franco, como o que nos propusemos a fazer durante o encontro e nesta avaliação.

Gabriel Di Pierro

Jéssica Martineli

Thiago Benicchio

Ciclocidade - Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo

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