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10.


Por Talita Noguchi

Com colaboração de Luiza Poli Franco

O uso da bicicleta como meio de transporte sempre existiu no Brasil, em especial por ser um modal de baixo custo. A história do cicloativismo é mais recente, mas mesmo assim, só em São Paulo, tem mais de duas décadas. As demandas políticas começaram a existir através da auto-organização da sociedade civil para que houvesse uma infraestrutura mínima capaz de viabilizar, de forma mais organizada e factível, o uso desse modal numa metrópole conhecida por dar prioridade aos carros. Esse movimento inicialmente se caracterizou por demandar compartilhamento das vias públicas, respeito no trânsito e também pela ação direta, que na última década foi impulsionada pelas Bicicletadas, encontros mensais que se dão até hoje na última sexta-feira de cada mês, saindo da Praça do Ciclista, na avenida Paulista. Essa praça, inclusive, teve sua existência legitimada por meio das demandas de cicloativistas junto à administração pública alguns anos atrás. Legitimidade que mostra a força da organização coletiva.

Essa ação não foi a única. Dela surgiram inúmeras ramificações, cada uma cuidando de um recorte específico da bicicleta na cidade, como por exemplo o coletivo Pedal Verde, que geria atividades de plantio de árvores em espaços urbanos; e o coletivo Pedalinas, que dava um recorte de gênero à questão do cicloativismo promovendo oficinas comunitárias para e por mulheres.

No centro das atenções se colocavam as vantagens desse modal ao público, para assim gerar a reflexão de como uma cidade deveria se estruturar, de modo a não estar fundamentada apenas no carro, que, além de extremamente individualista e incentivador do consumismo, também apresenta impactos negativos em âmbito local e global. 
Com o passar do tempo o cicloativismo em São Paulo foi se fortalecendo, e as questões críticas acerca desse movimento urgem ser apresentadas e discutidas.

Gênero, raça, classe e neocolonialismo

Como tudo que cresce e resiste, o cicloativismo deve ser periodicamente revisto, repensado e contextualizado.
 Ao longo dos últimos anos esse ativismo se mostra cada vez mais como uma demanda somente de infraestrutura, que tem toda a razão de ser ao questionar a carrocracia. Mas, ao mesmo tempo, por esse foco exclusivo, não consegue atravessar questões como gênero, raça, classe e neocolonialismo. Tanto é assim que a fundação e participação de coletivos que têm o cuidado de observar esses aspectos são marginais às discussões daqueles que se institucionalizam para cuidar da ciclomobilidade na cidade.

Reflexões centrais – e não meramente pontuais ou tokenistas – [1] no âmbito do cicloativismo paulistano sobre as necessidades de mulheres, pessoas negras e em situação de vulnerabilidade social são vistas como secundárias. Esse fato demonstra o domínio do discurso cicloativista por grupos hegemônicos – homens cisgêneros brancos, heternormativos e de classe média, majoritariamente – acríticos em relação às desigualdades que conformam a sociedade.

O greenwashing que foi habilmente construído nos anos 1990, renova-se em bikewashing e no que for necessário para a adesão desse público.
É interessante notar que o movimento cicloativista institucionalizado se fortaleceu nos últimos quatro ou cinco anos, tanto devido à adesão crescente de uma população localizada no centro expandido, quanto aos estímulos dados pela administração do prefeito Fernando Haddad (PT) e de incentivos vindos de empresas privadas, destacando-se o gigante Itaú-Unibanco. [2]

Esses três fatores podem ser analisados com alguma minúcia para entendermos melhor os caminhos que esse ativismo vem tomando e que podem ser aplicados a muitos outros ativismos, pois refletem um modus operandi de absorção de discursos ativistas por políticos e empresas, que já notaram a força desses movimentos e, ao mesmo tempo, a fraqueza de uma sociedade que não está acostumada a se auto-organizar. 


Cicloativismo lobista

A população do centro expandido de São Paulo muitas vezes tem dificuldades de entender que ciclovias e ciclofaixas não são suficientes para promover mudanças estruturais. Em uma sociedade com crescentes desigualdades, mulheres continuam sendo as mais assediadas e agredidas no uso desse modal; as áreas com ciclovia passam por inúmeras mudanças que levam ao aumento do aluguel e do custo de vida de uma região, gerando, assim, a expulsão gradual daqueles e daquelas que não têm poder aquisitivo para suportar a elevação dos preços.

É notável que quando os grupos hegemônicos cicloativistas tiveram, ao longo da última administração municipal, algumas de suas demandas atendidas, eles se tornaram reativos a visões mais críticas sobre certos aspectos da gestão Haddad. Essa administração teve pontos positivos, mas ao mesmo tempo manteve posturas higienistas que oprimem diretamente a população em situação de rua, sabidamente vulnerável. Em diversos trechos a construção de ciclovias aconteceu – e segue acontecendo nesse exato momento na região do Ceagesp – a expulsão dessa população das ruas [3].

Ao fechar os olhos a essas violações de direitos humanos, o cicloativismo atua como um movimento lobista, realizando manobras em causa própria e optando por não pensar na sociedade como um todo.

Banco Itaú, pai generoso do cicloativismo hegemônico

Desde 2012, a participação do banco Itaú no âmbito da mobilidade por bicicleta tem sido quase onipresente em São Paulo e outras capitais, com o patrocínio a instituições, sites, eventos e lançamentos de livros e pesquisas sobre bicicleta. E não é só nesta seara pública que o banco vem se imiscuindo. Hoje sabemos, por exemplo, que o Itaú está presente na violenta reforma do ensino público em âmbito nacional [4] e nas modificações urbanas gentrificadoras no centro da capital paulista [5] – inclusive passando por cima das populações vulneráveis [6].

Um movimento como o cicloativismo institucionalizado, que tem grande parte das suas ações viabilizadas por uma empresa claramente elitista e antidemocrática, não pode se dizer a favor de um mundo mais acessível e humano, capaz de prover uma cidade para pessoas, dado que esse mesmo movimento parece não entender seu papel reforçador na construção de uma cidade inacessível para aqueles que são tidos como “outros”.

A não hegemonia existe

Obviamente esse movimento não é tão homogêneo quanto parece, apesar do discurso apocalíptico que pretende mostrar um único caminho para viabilizar o uso da bicicleta enquanto modal de transporte amplamente disseminado. Existem grupos não hegemônicos que não se pautam por caminhos únicos e nem por discursos fatalistas que dizem ser o aceite de dinheiro de banco e o alinhamento a políticas claramente higienistas a única maneira de viabilizar e manter ações pró-bicicleta.

Existem grupos não institucionalizados que formulam propostas para além das mudanças de infraestrutura e que reconhecem existir questões muito mais críticas do que simplesmente a implementação de formas de se locomover pela cidade. Esses grupos entendem que o acesso à cidade não pode estar desvinculado da reflexão central sobre desigualdades sociais, e que a questão da mobilidade é apenas uma entre tantas, e que estas questões colocam-se simultânea, sistêmica e estruturalmente.

Interseccionalidade x pensamento único

É premente para qualquer ativismo contemporâneo contemplar, de forma central, as discussões sobre classe, raça, gênero e neocolonialismo em suas ações. Sem abordar esses temas estruturais e estruturantes, é grande a probabilidade de se perpetuar o status quo e de permitir que o discurso ativista seja fagocitado por grupos econômicos que agridem, violentam e calam em prol de uma cidade mais humana para poucos.


É um desafio repensar os ativismos de forma a não se ensimesmar.
 Não é cabível que grupos hegemônicos – brancos, masculinos, cisgêneros, heteronormativos e de classe média – discutam somente entre os seus questões acerca da infraestrutura de toda a cidade, e nenhum grupo pode se fazer cego frente às desigualdades que se apresentam. A realidade contemporânea traz indícios de que as mudanças continuarão vindo de grupos que acabam trabalhando só em benefício próprio – ainda que de forma ingênua.

Frases como
“a revolução virá de bicicleta”, 
“a revolução será feminista” 
ou “a revolução será xis ou não haverá revolução”
, mostram que é preciso refletir mais, tanto por seu formato de slogan midiático e superficial, quanto por não passarem a mensagem de que o trabalho para as mudanças estruturais é árduo e não pode estar está contemplado em uma única frente de ação – muito menos em um único grupo.


O desafio está na interseccionalidade das discussões e na organização de quem atua coletivamente como um corpo político que entende a sociedade como um todo a ser protegido, e não como grupos específicos a serem protegidos. E isso necessariamente inclui o tratamento diferenciado de cada questão de acordo com as desigualdades apresentadas, resguardando os mais vulneráveis e não o contrário.
 Demandas de infraestrutura são necessárias e devem existir, mas é preciso voltar ao início, à raiz das discussões, onde se propunha que a rua fosse de todas as pessoas.

[1] http://direitoadm.com.br/tokenismo/

[2] http://www.mobilize.org.br/noticias/10063/itau-fara-upgrade-nas-bikes-compartilhadas-do-pais-em-2017.html

[3] http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haddad-retira-sem-teto-de-nova-ciclovia,1726692

[4] [http://www.passapalavra.info/2016/09/109402

[5] http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/

[6] http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/dadosabertos/documentos/1%20OFICIO%20ITAU%20PARA%20SMADS%20-%2018%20JANEIRO%202013.pdf

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