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    sabrinaduran
  • 31 de ago. de 2016
  • 16 min de leitura

Por Sabrina Duran*

Texto apresentado durante o debate "Civilização e Barbárie" em 28/7/16 no SESC Sorocaba

Em 1968, ano de insurgências políticas, sociais e culturais em diversos países, o sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre publicava um livro-manifesto que se tornaria mundialmente famoso: "O direito à cidade" [1]. Nesta obra, Lefebvre, um marxista, critica o modo de produção capitalista industrial das cidades e suas consequências. Para ele, a cidade é o espaço em que o valor de uso se sobrepõe ao valor de troca, em que a obra é superior ao produto, em que deve vigorar a apropriação do espaço, e não sua propriedade. A cidade é o espaço do habitar pleno, e não apenas o espaço do habitat; é o lugar em que o tempo tem primazia sobre o espaço; é o lugar do lúdico e do festivo, entendidos como a possibilidade da surpresa, do imprevisto e da apropriação coletiva. A cidade é a realidade imediata, prático-sensível, na qual se assenta o urbano, ou seja, o conjunto de relações que constroem uma realidade social. Esta cidade, assim configurada, é a cidade propícia à vida urbana.

Ao contrário, a cidade produzida pelo capitalismo industrial é uma ameaça à vida urbana. É uma cidade fragmentada, hierarquizada e homogênea, portanto refratária ao encontro, à diferença, ao lúdico e à festividade; uma cidade em que o social está dissociado do urbano, em que o valor de troca sobrepõe-se ao valor de uso, em que impera a lógica de lugar de consumo e consumo do lugar e que, por isso mesmo, o acesso a ela não está permitido às camadas populares – o que deixa em evidência a estratégia de dominação de classe desse tipo de produção da cidade.

O "direito à cidade" defendido por Lefebvre, portanto, é o direito de acesso universal à cidade em que a vida urbana é possível. Ele diz: "o direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada. Pouco importa que o tecido urbano encerre em si o campo e aquilo que sobrevive da vida camponesa, conquanto que 'o urbano', lugar de encontro, prioridade do valor de uso, (...) encontre sua base morfológica, sua realização prático-sensível."

Como, então, acessar esse direito, essa cidade? Lefebvre não diz. Não diz nem como, nem onde, nem com quais recursos. Sua escrita não é prescritiva. Em "O direito à cidade", Lefebvre nos propõe dois exercícios. Primeiro, o de reflexão-indagação: se a cidade é o espaço de produção e reprodução das relações capitalistas, portanto, de relações injustas em sua gênese, como efetivar, neste espaço, o "direito à cidade"? Da reflexão-indagação, parte-se para o segundo exercício, que é o da imaginação: se o "direito à cidade" não pode contemporizar com a injustiça inerente ao capitalismo, então é preciso vislumbrar um horizonte utópico: o "direito à cidade" é, em essência, anticapitalista, e por isso ele só se efetiva fora do capitalismo.

O que não se diz de Lefebvre

Esse é o ponto crítico a ser abordado nesse texto: o horizonte anti-capitalista do conceito de direito à cidade desenvolvido por Lefebvre. Nos últimos três anos, pelo menos, na cidade de São Paulo, o conceito de "direito à cidade" tem sido retomado e reafirmado em diversas discussões sobre a produção da cidade, agora não mais no contexto do capitalismo industrial, e sim no do capitalismo financeiro.

Urbanistas, jornalistas, pesquisadores, advogados, integrantes de movimentos sociais e de coletivos urbanos e gestores públicos têm utilizado o conceito lefebvriano para argumentar a favor do direito a uma cidade "mais humana". A retomada do conceito vem se dando, principalmente, em três aspectos: no aspecto do direito ao encontro, com cidades formalmente mais proporcionais à escala humana e livres de restrições físicas, como cercamentos e catracas; no aspecto da festa e do lúdico, com espaços públicos formalmente atraentes à ocupação livre pelas pessoas (espaços abertos, arborizados, com infraestrutura para a permanência agradável, etc); e no aspecto da participação democrática da sociedade nas decisões sobre as transformações urbanas.

O curioso dessa retomada do conceito lefebvriano é que o "direito à cidade" também tem sido reclamado, hoje, por agentes que, historicamente, foram e ainda são responsáveis por grande parte da segregação, hierarquização, homogeinização e, mais recentemente, pela privatização dos espaços públicos das cidades. São esses agentes as incorporadoras e as instituições financeiras.

Atenção às três frases e ao vídeo abaixo:

1) "Há quem diga que as cidades são feitas de concreto, de aço, de tijolo, de asfalto. Mas nós sabemos que não. Sabemos que as cidades são feitas de gente, por isso construímos prédios como se fossem gente. Gente tem beleza, mistério, humor, graça, gente gosta de gente, do encontro, do entorno, gente troca ideias, muda de ideia." [2]

2) "Morar no Centro de São Paulo é estar no centro de tudo. Poder fazer a maioria dos trajetos a pé, ou de bicicleta. (...) Ganhar o máximo de tempo possível, para poder gastá-lo de forma produtiva, passeando, trabalhando, estudando ou se divertindo." [3]

3) "Pedalar ajuda a manter o condicionamento físico e a reduzir o estresse, e ainda estimula uma saudável convivência com o espaço público, contribuindo para a qualidade de vida e a humanização das cidades." [4]

As duas primeiras frases foram retiradas do site de duas incorporadoras, e a terceira do site de um banco privado. O vídeo é uma produção da incorporadora e construtora Gafisa. Essas empresas têm atuação forte e específica na capital paulista. Um garimpo ainda maior dessas frases poderia ser feito nos sites e panfletos de outras empresas. São frases que mostram a incorporação, se não literal, mas em essência, de algumas ideias-chave de Lefebvre na sistematização do conceito de "direito à cidade".

O questionamento a ser levantado é: se a obra do filósofo aponta para um horizonte anticapitalista, em que momento essas empresas, representantes do grande capital, sentiram-se positivamente contempladas por um conceito que afronta o sistema que abraçaram, que alimentam e do qual dependem? Em que momento empresas de setores que hoje, mais do que nunca, planejam e financiam a produção de cidades segregadas, desiguais e para poucos, entendem que um conceito de esquerda pode ajudá-las a vender mais as "soluções" urbanas que oferecem?

Quando Henri Lefebvre diz que o "direito à cidade" "só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada", ele diz, em seguida, que "só a classe operária pode se tornar o agente, o portador ou o suporte social dessa realização". Diz ainda que, "como há um século, ela [a classe operária] nega e contesta, unicamente com sua presença, a estratégia de classe dirigida contra ela." (pg. 118)

Diz ainda que "apenas [o proletariado] pode por um fim às separações (às alienações). Sua missão tem um duplo aspecto: destruir a sociedade burguesa construindo uma outra sociedade (...). É preciso virar o mundo pelo avesso; é numa outra sociedade que se realizará a junção do racional e do real."

Lefebvre diz também que é necessária uma revolução econômica, com planificação orientada para as necessidades sociais; e uma revolução política, com controle democrático do aparelho estatal e autogestão generalizada. Por fim, ele afirma que "para a classe operária, rejeitada dos centros para as periferias, despojada da cidade, expropriada, assim, dos melhores resultados de sua atividade, esse direito tem um alcance e uma significação particulares. Representa para ela, ao mesmo tempo, um meio e um objetivo, um caminho e um horizonte (...). Só o proletariado pode investir sua atividade social e política na realização da sociedade urbana. Só ele também pode renovar o sentido da atividade produtora e criadora ao destruir a ideologia do consumo. Ele tem, portanto, a capacidade de produzir um novo humanismo, diferente do velho humanismo liberal que está terminando sua existência: o humanismo do homem urbano para o qual e pelo qual a cidade e sua própria vida cotidiana na cidade se tornam obra, apropriação, valor de uso (e não valor de troca) (...)."

Proletariado, planificação orientada para necessidades sociais; autogestão generalizada; destruição da ideologia do consumo e destruição da sociedade burguesa. Trata-se de uma análise e proposição sobre a cidade claramente política, com perspectiva de classe, com crítica ao Estado, ao setor privado e com uma fé indiscutível no potencial revolucionário da classe oprimida.

Portanto, voltamos ao questionamento central desse texto: num momento de retomada do conceito de "direito à cidade" pela sociedade e gestores públicos – pelo menos na cidade de São Paulo –, o que favorece a apropriação de uma teoria anticapitalista por setores que são alguns dos mais agressivos do capitalismo neoliberal?

A crise da crítica

Em primeiro lugar, é preciso fazer uma rápida atualização conceitual: é evidente que o proletariado que Henri Lefebvre retrata em seu livro de 1968 não é o mesmo que a massa de trabalhadores dos dias de hoje que vende sua força de trabalho em ocupações alienantes e opressoras. As mudanças estruturais do capitalismo nas últimas décadas também mudou a configuração da força de trabalho explorada. O que é importante deixar claro aqui é que o proletário mencionado pelo filósofo é, em última análise, o excluído da cidade, aquele a quem os centros urbanos não estavam acessíveis, e a quem se destinavam as periferias destituídas de vida urbana. Pensando a partir desse horizonte, os excluídos urbanos de hoje são as pessoas em situação de rua, os catadores de material reciclável, vendedores ambulantes. Mulheres e homens – em sua maioria negras e negros – de baixo ou baixíssimo poder aquisitivo, que vivem em favelas nas periferias da cidade ou, quando em regiões centrais, conseguem acessar apenas habitações de baixa qualidade, como os cortiços, ou ocupações de edifícios abandonados. São pessoas alijadas da vida urbana. Essa atualização conceitual não quer dizer que a luta de classes tenha se diluído no tempo. Não. Como vem repetindo a urbanista Ermínia Maricato há alguns anos, a luta de classes, hoje, se dá no chão da fábrica, mas, principalmente, no chão da cidade [5].

Em segundo lugar, é preciso dizer que uma das críticas dirigidas a Lefebvre em sua obra "O direito à cidade" é que seu horizonte utópico de que o proletariado destruiria a sociedade burguesa e criaria uma cidade desalienada em um sistema não capitalista não se deu na prática. Esse fato, porém, não significa que a luta de classes está finalizada e ganha para o lado da burguesia. Os conflitos persistem. Esse fato mostra que a burguesia leva vantagem na disputa, uma vez que a luta de classes se dá no e pelo espaço que ela pensa e constrói majoritariamente. Portanto, o horizonte de disputa ainda está posto.

Dito isso, recorro a Luc Boltanski e Ève Chiapello, sociólogos franceses, para refletir sobre a questão da apropriação do conceito de "direito à cidade" por empresas capitalistas.

No livro "O novo espírito do capitalismo", Boltanski e Chiapello defendem que a crise do capitalismo nas últimas décadas, com aumento das desigualdades sociais, precarização das condições de trabalho, etc, não é, em essência, uma crise do capitalismo; é, sim, uma crise da crítica ao capitalismo. [6] Apenas um esclarecimento: o que os autores chamam de espírito do capitalismo é a ideologia (conjunto de ideias e valores, nesse caso) que justifica nosso engajamento no capitalismo.

De acordo com os autores, o capitalismo se modifica ao longo do tempo a partir das respostas que dá às críticas que recebe. Um dos efeitos dessa crítica é que, "opondo-se ao processo capitalista, ela coage aqueles que são seus porta-vozes a justificá-lo em termos do bem comum. E quanto mais virulenta e convincente se mostrar a crítica para um grande número de pessoas, mais as justificações dadas [pelos capitalistas] como troco deverão estar associadas a dispositivos confiáveis, que garantam uma melhoria efetiva em termos de justiça."

Os autores analisaram textos de gestão empresarial franceses de dos anos 60 e 90. Esses textos alimentaram e orientaram o pensamento do patronato daquela época, e indicaram as diretrizes do novo espírito do capitalismo que surgiria. No final dos anos 60, início dos 70, o modo de produção fordista era fortemente criticado por sua rigidez e organização hierarquizada do trabalho. As palavras de ordem da crítica da época pediam por mais liberdade, flexibilização, autonomia e criatividade. E o que é que o novo espírito do capitalismo entregou, a partir dessas demandas, nas três décadas seguintes? Precarização das condições de trabalho, flexibilização e supressão de leis trabalhistas, de direitos, concorrência generalizada entre trabalhadores, apagamento da fronteira entre o que era trabalho e lazer, transformando toda a vida humana, especialmente a vida criativa, o ócio e o lazer, em matéria-prima a ser explorada para fins de acumulação do capital.

Daí que Boltanski e Chiapello identifiquem uma crise da crítica ao capitalismo naquela época, que não conseguiu forçar uma mudança substancial em favor do bem comum. "Se os porta-vozes dos movimentos sociais, em resposta a suas reivindicações, se limitarem a declarações superficiais não seguidas de ações concretas – palavras vazias, como se diz –, se a expressão de bons sentimentos [por parte dos capitalistas] for suficiente para acalmar a indignação, não haverá nenhuma razão para a melhoria dos dispositivos que supostamente tornam a acumulação capitalista mais condizente com o bem comum. E, quando o capitalismo é obrigado a responder efetivamente às questões levantadas pela crítica, para procurar apaziguá-la e conservar a adesão de suas tropas (...) ele incorpora, nessa operação, uma parte dos valores em nome dos quais era criticado."

O que os autores estão dizendo é que, se a crítica ao capitalismo não for incisiva e bem fundamentada, e se não vier acompanhada de ações concretas que deem um corpo a ela, os capitalistas vão incorporar parte dos valores que lhes faltavam e pelos quais eram criticados. E esses valores assumidos pelos capitalistas, finalizam Boltanski e Chiapello, são colocados, pelos capitalistas, a serviço não de uma atuação mais justa, mas sim do processo de acumulação, agora renovado.

A crítica à urbanização capitalista feita por Lefevbre em "O direito à cidade", ajudou a dar corpo teórico às críticas progressistas que marcaram o fim dos anos 60. Mas a adesão às suas ideias não durou muito naquele contexto. Escrevem os pesquisadores franceses Grégory Busquet e Jean-Pierre Garnier, que depois das agitações progressistas de maio de 68, "a contestação deu espaço à normalização." [7] A classe dirigente daquela época acatou a demanda de "maio de 68" para colocar "a imaginação no poder", ou seja, a elite intelectual de esquerda (que os autores chamam de pequena burguesia intelectual). Essa elite intelectual era a que fazia as críticas mais ferrenhas ao autoritarismo da classe dirigente e ao modo de produção capitalista. Pouco a pouco, porém, essa pequena burguesia intelectual vai sendo incorporada aos aparelhos estatais de cultura, pesquisa e na universidade, e também nos meios de comunicação e publicidade privados. Os horizontes críticos, então, começam a se tornar mais "pacíficos", "apaziguados". Dizem os autores: o lema "mudar a vida será elevado a credo oficial. E, desde então, em referência a Lefebvre, também o será mudar a cidade. Onde quer que fosse, inclusive nos círculos oficiais, se falará de "revolução urbana", mas esvaziada de qualquer conotação anticapitalista."

O desmonte da crítica da esquerda sobre a cidade capitalista vai ganhando corpo ao longo dos anos 70, conforme representantes da esquerda institucional assumem a gestão de diversas municipalidades na França. O cume da transformação da esquerda institucional em classe dirigente se dá em 1981, com a eleição do socialista François Miterrand à presidência. Escrevem Busquet e Garnier: "retrocesso da 'contestação,' desmobilização dos militantes. A maioria deles trocou os 'projetos de sociedade' da sua juventude pelos planos de carreira da maturidade. O abandono e o esquecimento do pensamento lefebvriano, assim como das teorias críticas, acompanharam esta adesão progressiva (mas não progressista) da pequena burguesia intelectual e, em particular, dos seus experts em 'problemas urbanos' à ordem estabelecida. Seu 'esquerdismo' foi sendo substituído por um reformismo cada vez mais moderado à medida em que se inseriam e ascendiam no seio das instituições (...). A crítica radical da urbanização capitalista já não era oportuna."

O sumiço da radicalidade anti-capitalista

Depois de toda essa fala, volto ao contexto micro da cidade de São Paulo. Os debates, atividades acadêmicas, culturais, de movimentos sociais e coletivos de ocupação urbana que estão sendo desenvolvidos nos últimos anos sobre o "direito à cidade" configuram, de alguma forma, o lugar de disputa desse conceito. Disputa, de um lado, entre os formuladores da crítica à cidade capitalista produzida como valor de troca e, do outro lado, os atores alvo da crítica, ou seja, os capitalistas produtores da cidade segregada, homogênea, hierarquizada.

Essa disputa, hoje, se dá num campo ainda mais complexo do que o que estava posto em fins dos anos 60. Hoje, o capitalismo financeiro, transnacional, neoliberal e cognitivo tem seu campo de exploração ampliado: do interior da fábrica, foi buscar a reprodução do capital no corpo da cidade, na destruição e reconstrução dos espaços urbanos, no trabalho criativo, social, cultural, no trabalho imaterial, na manifestação dos desejos, dos afetos, nas relações sociais estabelecidas em rede. Sendo assim, a crítica a este novo capitalismo é ainda mais difícil de ser feita de modo a provocar uma alteração substancial nesse sistema. Isso porque, num momento em que quase tudo é capitalizável, mesmo a crítica mais incisiva pode ser capturada e transformada em virtude do capitalista – e em mais capital.

Falando do contexto da cidade de São Paulo, em muitas das atividades promovidas por grupos progressistas nas quais o conceito de "direito à cidade" é debatido, é raro ser suscitada a radicalidade da luta de classes e o horizonte anticapitalista com que o conceito foi concebido por Lefebvre.

Por outro lado, é frequente que o "direito à cidade" seja apresentado por alguns desses grupos de forma bastante simplificada, como o direito de participar democraticamente nas decisões do poder público sobre as transformações da cidade. Esse debate é feito, muitas vezes, sem aprofundar no que Lefebvre já previa em relação à participação como ideologia [ideologia aqui entendida no sentido marxista de falseamento da realidade, como fetichização]. "Na prática – dizia ele – a ideologia da participação permite obter pelo menor preço a aquiescência das pessoas interessadas e que estão em questão. Após um simulacro mais ou menos desenvolvido de informação e de atividade social, elas voltam para sua passiva tranquilidade, para o seu retiro. É evidente que a participação real e ativa já tem um nome. Chama-se autogestão."

Também é frequente que o "direito à cidade" seja apresentado de forma monolítica como o direito a transformar a cidade num espaço propício ao encontro, mais humano – uma "cidade para pessoas" – e que para isso as estruturas físicas urbanas precisam ser repensadas no sentido de readequação à escala humana. Trata-se, em alguns casos, de um propositivismo irreflexivo que não apenas hierarquiza prática e reflexão, como as contrapõe. Sobre isso, Lefebvre também já alertava: "o urbanismo como ideologia formula todos os problemas da sociedade em questões de espaço e transpõe para termos espaciais tudo o que provém da história, da consciência. (...) Médico do espaço, ele [o urbanista] teria a capacidade de conceber um espaço social harmonioso, normal e normalizante."

Outra interpretação de ângulo único entre alguns grupos, especialmente os que promovem atividades e eventos culturais em espaços públicos, é o de que o "direito à cidade" se realiza por meio da utilização lúdica e festiva desses espaços de modo a reocupá-lo. É importante dizer que, muitas vezes, esses espaços supostamente vazios ou "sem vida" já estão ocupados por camadas populares e por pessoas em situação de vulnerabilidade social. Busquet e Garnier dizem que Lefebvre defendia o direito ao 'jogo' no espaço urbano e na vida cotidiana, o direito à surpresa, ao imprevisto. Tudo isso para ele remetia à reapropriação coletiva da cidade como modo de superar a alienação mercantil e utilitarista do capitalismo. Afirmam os autores: "isso não tem nada a ver com a multiplicação, desde décadas, de 'festas urbanas' organizadas por municipalidades e financiadas por empresas privadas, com o objetivo de fazer com que a população local se esqueça, através de uma mobilização consensual e controlada, em lugares e datas programadas pelas autoridades, da existência repetitiva e enfadonha que lhes é imposta. Alguns comentaristas creem ver nessas festividades normalizadas e normalizantes uma realização do direito à cidade. Contudo, ninguém melhor que Lefebvre pressentiu o caráter fictício e mistificador dessa política quando ela ainda era incipiente: 'é uma aparência caricaturesca de apropriação que o poder autoriza.' O filósofo dizia que a apropriação verdadeira, revolucionária, é combatida pelas forças de repressão, que ordenam o silêncio e o esquecimento."

Não é estranho, portanto, que incorporadoras, bancos, e mesmo administrações públicas comprometidas com o grande capital financeiro e imobiliário ergam e defendam a bandeira do "direito à cidade" lefebvriano [obviamente que sem nada mais de Lefebvre naquilo que dizem]. O cenário para apropriação e tergiversação do conceito para estas empresas e administrações é fértil, tanto pela oferta de itens capitalizáveis, quanto pela ausência de uma abordagem anticapitalista do conceito, que poderia [deveria] ser feita pela esquerda.

Coincidência ou não, é interessante pensar que hoje, na cidade de São Paulo, como há quatro décadas na França, o esvaziamento do conceito de seu horizonte anti-capitalista e de luta de classes aconteça quando um representante da esquerda institucional assume o comando da administração municipal. Herdeiro de uma cidade traumatizada por políticas carrocêntricas e pela falta de diálogo com a população legados por seu antecessor, o atual prefeito de São Paulo, tendo ouvido as demandas de uma parte da ala progressista do eleitorado, vem implementando políticas que priorizam o transporte público e infraestrutura para bicicletas. Além disso, e em contraste com a "sisudez urbanística" do seu antecessor, tem promovido a ocupação de praças, ruas e parques com eventos culturais, inauguração de salas públicas de cinema, parklets, espaços para food trucks, murais de grafite e abertura de avenidas para o lazer público. Tudo isso ao mesmo tempo em que fecha equipamentos públicos de atendimento à população em situação de rua sem qualquer política de habitação permanente, ordena a retirada dessas pessoas das vias públicas pela Guarda Civil Metropolitana e determina a reintegração de posse de espaços situados em áreas de especulação imobiliária ocupados por pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesse aspecto, ele dá continuidade ao legado do antecessor, com a vantagem política-eleitoral de não ser percebido negativamente como ele o era. Para tanto, entre outras estratégias, recorre a um discurso "ressignificado" do conceito lefebvriano de que todos têm direito ao espaço público, e que não se pode privatizá-lo com ocupações particulares permanentes [no caso, os moradores de rua estariam privatizando as calçadas e baixos de viadutos onde estendem seus papelões e cobertores]. Sobre essa ideologização do espaço público pela boca do poder institucional, o antropólogo espanhol Manuel Delgado diz que essa construção de um espaço "místico da democracia formal, cheio de valores grandiloquentes como paz, tolerância, sustentabilidade, convivência entre culturas" é, na verdade, uma estratégia para "sacralizar a rua e exorcizá-la de toda presença conflituosa". "Trata-se da geração de um autêntico entorno intimidatório, exercício de repressão preventiva contra setores pauperizados da população: mendigos, prostitutas, imigrantes. As regras que o poder público impõe, pouco a pouco, para o uso cívico dos espaços públicos [desse espaço público ideologizado], serve, na prática, para acossar formas de dissidência política ou cultural às quais se acusa sistematicamente já não de 'subversivas', como antigamente, mas de algo pior: de 'incívicas', na medida em que desmentem ou desacatam o normal fluir de uma vida pública declarada por decreto, amável e desconflitizada." [8]

Talvez esta seja a fisionomia da esquerda domesticada pelo grande capital, que mantém o discurso progressista para fins de adesão e legitimação, mas na letra fecha com a agenda do neoliberalismo urbano, que organiza a vida e a morte independentemente de partidos políticos. Ou, talvez, seja apenas a fisionomia de uma esquerda desesquerdizada, uma ex-querda.

Uma crítica sobre a produção capitalista da cidade que contemporize com esse modo de produção – afinal, capitalismo é o que tem pra hoje, como se diz –; uma crítica que não parta das perspectivas de classe, raça e gênero; uma crítica que ignore que mesmo um espaço mais "humano" se dá sobre o espaço de produção e reprodução das injustas relações capitalistas, é uma crítica rasa, sem potência emancipadora e, no limite, cúmplice das violências cometidas contra pobres, mulheres, negras e negros que são, historicamente, os mais explorados pela máquina capitalista.

O horizonte crítico anticapitalista apresentado por Lefebvre ainda está posto. É utópico, sem dúvida, mas não no sentido senso comum de algo inatingível, e sim no sentido de um horizonte que por enquanto está mais além, e por isso nos coloca em movimento para realizá-lo todos os dias, durante a própria marcha. O contrário da utopia não é a realidade, mas sim o pragmatismo que, não raro, oculta um profundo conformismo com a ordem vigente. E é preciso não se conformar.

* Sabrina Duran é jornalista

[1] https://monoskop.org/images/f/fc/Lefebvre_Henri_O_direito_a_cidade.pdf

[2] http://www.ideazarvos.com.br/

[3] http://www.setin.com.br/residencial/setin-downtown-republica

[4] https://ww2.itau.com.br/hotsites/sustentabilidade/_/no-seu-dia-a-dia/biblioteca-virtual/materias/bike_rio.html

[5] http://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/as-forcas-que-disputam-o-centro/

[6] https://www.scribd.com/doc/68610483/BOLTANSKI-CHIAPELLO-O-novo-espirito-do-capitalismo

[7] https://www.dropbox.com/s/u2lcmb6i67pkiq5/02_lido_Un%20pensamento%20urbano%20todavia%20contemporaneo.%20Las%20vicisitudes%20de%20la%20herencia%20lefebvriana.pdf?dl=0

[8] https://www.fuhem.es/media/cdv/file/biblioteca/revista_papeles/111/el_idealismo_del_espacio_publico_M._DELGADO.pdf

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